Qual é o significado da vida? Isso era tudo – uma questão simples; uma questão que tendia a nos envolver mais com o passar dos anos. A grande revelação nunca chegara. A grande revelação talvez nunca chegasse. Ao farol, Virgínia Woolf
Uma voz, longe.
Quase um gemido.
Escuro.
Barulho de mar.
A voz da minha mãe.
Esse foi o sonho que tive depois de ler Ao Farol, de Virginia Woolf, o livro mais autobiográfico de sua obra. Virginia usa seus diários de infância como instrumento para a construção do livro, faz referências a muitos de seus familiares e retrata como era a vida nesse período, principalmente na casa da família na Cornualha.
A história acompanha o verão da família Ramsay em sua casa na ilha de Skye, no interior da Escócia, com vista para um farol — que, em muitos momentos, se impõe quase como um personagem. Ele está ali, imóvel e inabalável, enquanto a vida ao seu redor se desenrola em fluxos e rupturas. Ao longo das páginas, Woolf nos conduz por uma de suas marcas mais expressivas: o fluxo de consciência. Temos acesso aos pensamentos mais íntimos e contraditórios dos personagens — suas pequenas rivalidades, seus desejos nunca ditos, seus anseios silenciosos. O que é dito e o que é sentido são coisas bem diferentes, e isso fica claro a cada passagem.
A leitura exige tempo e entrega. À medida que nos acostumamos ao ritmo da narrativa, algo acontece: somos tragados pela profundidade dos pensamentos e pela melancolia contida nas entrelinhas, pela ameaça à vida cotidiana com a guerra à espreita e pelo ambiente descrito com tanta precisão e sensibilidade. O livro cresce dentro de nós. Passamos a compreender as tensões subterrâneas que atravessam as relações humanas, as mágoas nunca verbalizadas, os gestos pequenos que escondem significados imensos.
O farol, que à primeira vista parece apenas um elemento da paisagem, aos poucos se revela como um símbolo de tudo aquilo que permanece inalcançável. Ele ilumina o que antes estava nas sombras, mas também distancia. É promessa e frustração ao mesmo tempo. É um lembrete silencioso da passagem do tempo e daquilo que nunca conseguimos realmente alcançar.
Lembro que, ao me deparar com a morte inesperada de um dos personagens, precisei parar. Li e reli a passagem várias vezes antes de seguir. Woolf descreve a quebra da rotina pacífica como uma leve brisa outonal, interrompida repentinamente por uma tempestade de granizo que destrói tudo o que você tem.
Uma antecipação do inevitável.
O contraste é brutal. Cada nova leitura tornava a perda mais concreta, mais real. Como se eu estivesse experimentando aquela morte em camadas, aos poucos assimilando o vazio que ela deixava.
Agora era como se, tocada pela penitência humana e toda sua labuta, a divina bondade descerrasse a cortina e mostrasse por trás, únicas, distintas, a lebre ereta, a onda caindo, a embarcação balançando, as quais, se as merecêssemos, sempre seriam nossas.
Mas ai, a divina bondade, puxando a corda, cerra a cortina; não lhe apraz; cobre seus tesouros com uma saraivada de granizo e assim os estilhaça, assim os mistura de tal forma que parece impossível que algum dia lhes volte a serenidade ou que algum dia componhamos com seus fragmentos um conjunto perfeito ou leiamos nos pedaços espalhados as claras palavras da verdade. Pois nossa penitência merece apenas um olhar de relance; nossa labuta, apenas uma breve pausa. p.132
Dias depois, chorei ao falar sobre esse trecho — sim, eu sou dessas quando bebo. Não chorei pela morte em si, mas pelo modo como ela chega: abrupta, irremediável. Assim como o tempo, a morte é implacável. Não avisa, não espera. Num instante, você acredita que tem tudo, que é impossível ser tão feliz; no seguinte, percebe que tudo desaparece sem aviso.
A forma brusca com que Woolf narra a morte da Sra. Ramsay ecoa a perda de sua própria mãe, Julia, quando tinha apenas 13 anos — uma ausência que a acompanharia por toda a vida. A dor da escritora é palpável, quase sufocante.
"Escrevi o livro muito rápido e, depois de escrito, parei de ser obcecada por minha mãe. Não ouço mais sua voz, não a vejo mais…" — disse ela na biografia publicada na Coleção L&PM Pocket.
Já a figura do Sr. Ramsay tem uma forte representação de seu pai, Stephen. Virginia viria a sofrer muitas perdas, como a de sua querida irmã Stella, pouco tempo depois da de sua mãe, mas a morte de seu pai foi uma das que mais a abalaram. Gerou um colapso, um severo período depressivo e uma tentativa de suicídio aos 22 anos. Ele faleceu dez anos depois de sua mãe Julia, em decorrência de um câncer.
A literatura, para Woolf, parece ser uma forma de exorcizar seus fantasmas, mas também de preservá-los.
E talvez seja assim para todos nós. Cada um carrega dentro de si um fantasma, uma ausência não resolvida, palavras não ditas. Queremos dar significado ao que nos escapa, encontrar um desfecho, um ponto final ao que nos assombra, nos persegue. Mas talvez nunca nos livremos de vez desses fantasmas, né? Ou talvez esses fantasmas sejamos nós mesmos — ou versões de nós?
É o que reflito neste trecho do livro Ciranda de Pedra, da incrível Lygia Fagundes Telles:
"Via agora que jamais poderia se libertar das suas antigas faces, impossível negá-las porque tinha qualquer coisa de comum que permanecia no fundo de cada uma delas, qualquer coisa que era como uma misteriosa unidade ligando umas às outras, sucessivamente, até chegar à face atual. E o fio ia se alongando cada dia mais que passava, acrescido a cada instante de mais uma parcela de vida. Chegava a senti-lo dando voltas e mais voltas em torno do seu corpo, numa sequência sem começo nem fim."
No meu caso, talvez seja eu quem alimenta meu fantasma. Como se não quisesse que ele fosse embora de vez. Deixo-o quietinho no canto do quarto, olho para ele uma ou duas vezes ao dia, às vezes choro , sonho com ele… Depois passa.
Passa?
O tempo.
No mês de abril, fazem três anos que não falo com meu fantasma.
ps: Domingo vou assistir uma peça sobre Virginia com a Cláudia Abreu, ansiosa!
Nossa, eu já conhecia esse livro, mas ele nunca tinha entrado na minha lista – até hoje. Já fiquei com vontade de ler!