Uma mulher moderna incomoda muita gente. Ao Monteiro Lobato ela incomoda muito mais.
Anita Mafaltti e a revolução da arte moderna brasileira
“E eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura.”
Uma menina de treze anos, em meio a dúvidas sobre seu futuro, decidiu testar os próprios limites: amarrou suas tranças nos trilhos do trem e esperou que ele passasse. O barulho ensurdecedor, o deslocamento de ar e a sensação sufocante foram aterrorizantes. Mas foi ali, no meio do delírio e da loucura, que ela teve sua grande revelação: queria ser pintora.
Seria a pioneira do modernismo no Brasil.
Anita Malfatti.
Sua primeira professora foi sua mãe, Bety Malfatti, que dava aulas de línguas e pintura para complementar a renda da família após a morte do marido. Anita cresceu cercada por arte e, com o apoio de seu tio, Jorge Krug, foi estudar na Academia Imperial de Belas Artes, na Alemanha, entre 1910 e 1914. Lá, se encantou com as fortes pincelados do Expressionismo alemão- cujo objetivo era expressar o emocional, distorcer formas e usar cores pouco reais, um movimento ousado ,bem diferente do estilo tradicionalista dominante no Brasil. Até o final da Primeira Guerra, Anita seria a única artista brasileira sob a nova influência do expressionismo-alemão, por outro lado, os brasileiros estavam ainda familiarizados com o impressionismo francês.
Ao voltar para o Brasil, Anita desejava conseguir uma bolsa de estudos e organizou uma exposição com suas obras produzidas na Alemanha, incluindo "O Farol", "O Homem Amarelo" e "A Boba". Mas seu estilo inovador não foi bem aceito, e o responsável pela bolsa, Freitas Valle, fez críticas duras ao seu trabalho.
Desanimada, se sentiu deslocada em São Paulo. Mais uma vez, seu tio entrou em cena e financiou seus estudos dessa vez em Nova York, onde Anita estudou entre 1915 e 1916. Inicialmente, ingressou na Arts Students League of New York, mas logo migrou para a Independent School of Art, onde encontrou um ambiente mais alinhado com sua expressão artística.
Ao retornar ao Brasil em 1917, Anita decide participar de um concurso sobre a figura folclórica do Saci, promovido por Monteiro Lobato. Na época, ele já era um nome respeitado, escritor e colunista do jornal O Estado de S. Paulo. Anita enviou uma de suas pinturas, mas foi duramente criticada. Lobato considerava seu trabalho influenciado pelos "ismos":
“Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo — cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo — está hors-concours.”
Ele era contrário a qualquer tipo de inovação e defendia rigidamente o tradicional.
Apesar das críticas, Di Cavalcanti se interessou por seu trabalho e a incentivou a expor.
Em dezembro do mesmo ano, Malfatti organizou a exposição que seria a virada de chave de sua carreira, nomeada de Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti, apresentando 53 obras, incluindo A Estudante Russa, Tropical e Mulher de Cabelos Verdes.
Sua arte disruptiva , considerada por críticos da época até mesmo bizarra, chocou a provinciana elite paulistana , até então aquelas obras tinham uma aparência complemente inédita para o público , elas desafiavam o senso estético tradicional, com cores berrantes e incomuns, pinceladas que saltavam livremente da tela e formas desfiguradas e retorcidas da representação humana, muito longe das pinturas acadêmicas que estavam presentes nas galerias da época.
A repercussão foi intensa, e Monteiro Lobato voltou a atacá-la, publicando A propósito da exposição Malfatti. Segundo o escritor, a arte modernista era:
“Formada pelos que veem anormalmente a natureza e a interpretam à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva.”
Para ele, a arte dessa "segunda classe" de artistas era resultado do cansaço, do sadismo e da decadência. Comparava a arte modernista às pinturas feitas por pacientes de hospitais psiquiátricos:
“A única diferença reside em que, nos manicômios, esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses.”
Além do tom pejorativo, o texto de Lobato também carregava um viés machista. Em alguns trechos, ele afirmava que, se Malfatti fosse “apenas uma ‘moça que pinta’”, sem grandes talentos, não seria “merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento, dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima.”
Mas Anita não estava sozinha. Grandes nomes da arte, como Oswald de Andrade e Di Cavalcanti, saíram em sua defesa. Também se aproximou com quem ela formaria posteriormente “o grupo dos cinco” : Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Menotti del Picchia.
Oswald escreveu para o Jornal do Comércio em 1918:
“Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a notável eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a brilhante artista não temeu levantar com seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da nossa vida artística.
A impressão inicial que produzem os seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia.”
Não satisfeito com as críticas já feitas anteriormente, Lobato republicou seu texto com um novo título, Paranoia ou Mistificação?, incluído no livro As Ideias de Jeca Tatu, de 1919.
Infelizmente, o impacto negativo foi imediato, segundo Malfatti em uma conferência em 1951, revela que houveram quadros devolvidos após sair a critica de Lobato.
“Qual não foi a minha surpresa quando apareceu o artigo crítico de Monteiro Lobato. ‘Paranoia ou Mistificação’. Meus primeiros aliados ficaram perplexos! Mostraram-me o artigo, esperando que eu me defendesse e assim confirmasse a primeira impressão que tiveram sobre aquela pintura. Influenciados pela corrente contrária, devolveram 5 dos meus quadros, que já havia sido adquiridos.
Essa republicação seria enfim o estopim para intensificarem-se os debates e as inquietações sobre a urgência da modernização da arte no Brasil. Os artistas pró-modernismo passaram a se organizar mais efetivamente, difundindo uma visão renovada sobre a criação e o consumo de arte. Defendiam um novo senso estético, liberdade de expressão, valorização da cultura e da arte brasileira, experimentações e uma forte crítica ao academicismo e ao tradicionalismo. Esse embate se tornou um marco do modernismo brasileiro.
A vanguarda de Anita Malfatti abriria caminhos para a realização do evento que revolucionaria a história da arte nacional: a Semana de Arte Moderna de 1922.
Em 1962, ao relembrar esse período, Anita declarou:
“ (…) porque era realmente impossível tolerar-se o academismo, a inércia, o mau gosto da época.”
E pensar que tudo começou com uma menina de tranças amarradas nos trilhos de um trem.
usei como referência desse texto o material do site VER Anita Malfatti, um site que contém extenso material sobre a vida e obra da artista, recorte de revistas, jornais, fotos de seus diários, esboços, etc . de fato muuuuito interessante. vale a visita!
Linda sua foto no MASP