Um dia desses, eu estava chorando copiosamente de felicidade. É estranho chorar e estar feliz ao mesmo tempo. Acho que a gente se convence de que o choro sempre vem da tristeza, mas, às vezes, ele é a única linguagem possível — aquela que traduz o que as palavras ou os gestos não são capazes.
Chorei porque tinha lembrado de ter realizado um antigo sonho e queria acalentar o meu “eu” criança, que também tinha chorado. Por outro lado, ela (eu) chorou de desesperança, porque tinha certeza de que nunca o realizaria. Queria ter podido ser gentil com ela, enxugar suas lágrimas, passar a mão no cabelo loiro, cacheado e bagunçado e, parafraseando Gal, dizer: “Não se afobe, não. que nada é pra já”.
Hoje, confesso que sinto que tenho uma missão: curar essa criaturinha dentro de mim. Acolher seus sonhos, seus choros, suas angústias. Comer suas comidas favoritas — por exemplo, aquele sanduíche de queijo feito na torradeira e um copo de leite gelado com nescau, quando ficam aquelas bolinhas na superfície, ainda por dissolver. Ter um hobby e ser ruim nele sem me importar — tipo desenhar com giz pastel oleoso. E, principalmente, não me forçar a ser alguém madura o tempo todo.
Fui uma daquelas idiotas que caiu nesse conto de que parecer madura tornaria a vida mais fácil. A verdade é que eu fingia, boa parte do tempo. Queria impressionar os adultos e tentava me convencer de que não precisava ser tratada como criança. Vigiava minhas ações e ouvia uma voz constante na cabeça me repreendendo: “Uma moça responsável não choraria”, “Uma moça madura não reclamaria”, “Uma boa filha não dá trabalho”.
E foi essa mini pessoa que, desde cedo, perdeu toda a espontaneidade e para parecer mais velha pintava a unha de vermelho. Não se permitia errar — e, por isso, tentava cada vez menos. Ela se podava para agradar os adultos, na esperança de talvez ganhar um pouco da sua admiração. Parou de brincar — afinal, “coisa de criança” sempre soava como algo negativo. Parou de chorar na frente dos outros, passou a chorar escondido — e fez disso um hábito. Até porque não queria incomodar ninguém com seu “infantilidade”. Fingiu saber lidar com coisas difíceis, mesmo quando, na verdade, sabia muito pouco — ou quase nada.
Em A Filha Perdida, de Elena Ferrante, Leda é uma personagem talvez moralmente questionável e, ao mesmo tempo, muito identificável. A narrativa assume a forma de um fluxo de consciência, com memórias fragmentadas que flutuam entre sua infância, o início da maternidade e o presente — momento em que ela se sente perdida de si mesma. A obra reforça o que Freud demonstra em seus estudos: muitos conflitos se originam em traumas e repressões vividos na infância e se perpetuam na vida adulta. Questões mal resolvidas e negligenciadas na infância de Leda a levaram à repetição de padrões emocionais nocivos — para si e para os outros.
É o que a psicanálise compreende como ecos de experiências infantis não elaboradas: a “criança interior” clama por consolo, enquanto o adulto carrega no inconsciente sentimentos difusos de rejeição, insegurança e culpa — que se projetam na vida adulta como necessidade excessiva de aprovação, validação por meio de relacionamentos, medo de abandono, dificuldade em impor limites ou em pedir ajuda. Em O Eu e o Inconsciente, Carl Jung afirma que reconhecer e acolher essa parte de nós mesmos é um passo essencial para que nos tornemos quem realmente somos — desta vez, de forma plena e autêntica. Segundo Jung, esse processo conduz à maturidade psicológica e a realização da verdadeira individualidade. (Que lindo, né?)
O tempo, felizmente, passou. Desde então, já tive recolher meu cacos algumas muitas vezes mas, já realizei muitos sonhos e sou muito mais feliz do que poderia imaginar. Calma lá, também tenho minhas questões, inquietações — como todo mundo, lógico —, mas, como já fui bem triste, hoje sei reconhecer o quanto estou feliz. E, apesar do desejo de tornar a felicidade algo comum, não dá pra simplesmente fingir costume.
É preciso lembrar do que realmente importa, se não, do que vale a vida?
Pensando na menina chorona do passado… ela mal imaginaria que se tornaria uma mulher adulta com muito mais esperança e sonhos do que jamais se permitiu ter. Ela me acharia o máximo. Amaria meu cabelo, minhas roupas, perceberia que nos tornaríamos meio perua. Dançaríamos uma música disco dos anos 70 — daquelas que sempre amamos — e gosto de pensar que ela sentiria orgulho de mim.
De nós.
Tenho receio de parecer repetitiva nas últimas temáticas e de falar tanto de mim. Não sou acostumada com isso — na verdade, sempre evitei. Mas meu aniversário está chegando, e eu sempre fico nessa tentativa de resgate de mim mesma. Comentei com a
, que é uma pessoa incrível (obrigada, Substack!), que escrever tem feito parte desse processo de autoconhecimento. Tenho me colocado aqui, de entranhas abertas e sem floreio. Apesar do incômodo, sou grata pelo espaço que estou cultivando.Quero voltar a falar de A filha perdida, vale uma edição só desse livro.
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talvez você precise ler um livro gótico escrito por uma mulher latina
O problema de ser uma menina é que te ensinam que existe uma forma correta de ter medo, uma forma correta de se calar , uma forma correta de ser desejada.
esse livro é incrível e o seu texto faz muito jus a ele!!
Admiro muito a sua escrita, Nat, porque você consegue ser vulnerável com bastante lucidez! Como sempre, excelente texto. Fico feliz que esteja construindo uma vida que te dá orgulho :)