talvez você precise ler um livro gótico escrito por uma mulher latina
os horrores internos da juventude feminina
O problema de ser uma menina é que te ensinam que existe uma forma correta de ter medo, uma forma correta de se calar , uma forma correta de ser desejada.
Ser adolescente, pra mim, foi como cair num abismo. Uma queda lenta e barulhenta, onde tudo em mim parecia errado, fora de lugar. Poucas fases da vida me confrontaram com tamanha brutalidade — e poucas coisas foram tão monstruosas quanto esse período.
Era como se eu habitasse um corpo estranho, presa a emoções que eu não sabia nomear. A solidão , o olhar perdido no vazio, a tentativa em ser amada , e o abandono disfarçado de normalidade… tudo isso se empilhava sobre mim com um peso que ia muito além do que eu aguentava.
Em Mandíbula, a autora equatoriana Mónica Ojeda transforma o amadurecimento feminino em matéria de horror — não o horror sobrenatural ou fantástico, mas aquele que nasce dentro de casa, do corpo, das relações mais íntimas.
Neste romance, a puberdade, a descoberta da sexualidade e o desejo de pertencimento são atravessados por um medo profundo: medo do próprio corpo, das figuras de autoridade, do silêncio imposto, da culpa.
As adolescentes retratadas por Ojeda são alunas de um colégio católico de elite, criadas sob a vigilância do conservadorismo familiar e institucional. Entre elas, Fernanda Cárdenas se destaca — é ela nas primeiras páginas do livro quem é sequestrada por sua professora de Literatura, Miss Clara, num gesto extremo que revela as fissuras psíquicas de ambas. É a partir desse evento, e do que o antecede, que o livro vai desvelando, camada por camada, os horrores internos da juventude feminina.
Miss Clara e sua mãe mantêm uma relação perturbadora — incestuosa, sádica, sufocante. A narrativa mergulha nos recônditos mais sombrios e íntimos da mente ansiosa e obcecada de Clara, que mimetiza a mãe já falecida em gestos, falas e até mesmo usando suas roupas íntimas — mantendo-a viva o suficiente para guiar e, ao mesmo tempo, reprimir seus passos.
Nunca soube o que desencadeou nela aquela paixão infantil e imprópria que a levou a se aproximar da boca da mãe e beijá-la lambendo seus dentes, mas mergulhava numa vergonha profunda cada vez que se lembrava dos detalhes - as cobras vermelhas dos olhos de Elena, o tapa na testa, a maneira como a empurrou, apavorada, como se a tivesse pegado fazendo algo inominável.
A palavra “mandíbula” se repete e se desloca ao longo da narrativa como uma alegoria filosófica. Através dela, Ojeda escreve com os dentes e reflete sobre a dor, o medo e o trauma — e é a partir desse signo que a autora revela a selvageria e a violência que carregamos dentro de nós, moldadas pelos nossos traumas mais profundos.
O livro me fez relembrar da minha própria adolescência, o desconfortante limbo entre a infância e a vida adulta. A confusão mental constante, sensação de não caber em lugar nenhum, de ter que atender as expectativas que são projetadas e sufocam nossa existência. E para as mulheres, que aprendem cedo demais a sentir medo — do estupro, do sequestro, do próprio sangue. Estamos diante da transformação do corpo, da descoberta da sexualidade e da pressão estética. É comum criarmos, então, um universo particular onde possamos ter alguma autonomia e compreensão — mas esse mundo é constantemente rompido e incompreendido pelos adultos.
Vejo nas adolescentes do livro uma tentativa desesperada de romper com os limites impostos, de fugir da realidade. Elas se entregam a rituais de terror, exploram creepypastas, jogos violentos, escrevem fanfics eróticas, participam de cultos secretos. Não é apenas uma atração por histórias assustadoras: é uma tentativa de criar uma linguagem para o que sentem — uma linguagem que o mundo adulto se recusa a oferecer.
O que tinham em comum era essa fome. Uma fome de violência, de saber o proibido, de atravessar os limites do que é aceitável.
A amizade entre Fernanda e Annelise se destaca como o núcleo emocional e simbólico do livro. É uma relação intensa, marcada por jogos psicológicos, adoração e violência velada. As duas ultrapassam os limites do afeto convencional, mergulhando num território de simbiose e obsessão. A escrita de Ojeda não busca moralizar ou explicar: ela simplesmente mergulha, com coragem, nesse terreno instável onde erotismo, desejo de poder e medo da solidão se misturam.
A adolescência em Mandíbula é um estado de alerta constante. Os corpos das meninas estão mudando, o mundo exige que elas se calem, e o desejo explode por onde consegue — pela escrita, pela dor, pelo rito, pela mordida.
Tudo o que sabemos do amor nos foi ensinado primeiro pelo medo.
Miss Clara, ao sequestrar Fernanda, não representa apenas uma mulher instável. Ela é o retrato do que acontece quando a infância e a adolescência são sufocadas — o produto de um ciclo de violência emocional que se perpetua sob o disfarce da normalidade.
Com uma escrita visceral e uma linguagem própria, Ojeda revela a potência e a obscuridade da experiência feminina — o medo que nasce da consciência da própria vulnerabilidade, a monstruosidade que habita dentro de nós, os vínculos entre mulheres e suas fissuras profundas, capazes de despertar sentimentos primitivos e perturbadores.
Mandíbula condensa os piores pesadelos das mulheres. Mostra que o verdadeiro horror está no rotina, nas casas limpas, nos pais bem-intencionados e educados , no autoritarismo disfarçado de cuidado, na linguagem que nos é negada, na dor sem nome que acompanha o crescer feminino.
É um romance que lateja.
Que sangra.
Que morde.
Na construção desse texto me lembrei constantemente do filme As virgens suicidas (1999) , dirigido pela Sofia Coppola adaptado do romance Jeffrey Eugenides, que também reflete como a adolescência feminina pode ser muitas vezes como um território assombrado pelo controle, incompreensão e um estranhamento de si, flutuando entre viver intensamente e desaparecer.
Leia também:
Quem Tem Medo (dos Fantasmas) de Virgínia Woolf
Qual é o significado da vida? Isso era tudo – uma questão simples; uma questão que tendia a nos envolver mais com o passar dos anos. A grande revelação nunca chegara. A grande revelação talvez nunca chegasse. Ao farol, Virgínia Woolf
Gostei muito do texto! Acho o tema importantíssimo, apesar de não me identificar em todos os pontos, pois tive uma adolescência bem atípica (mas que também foi péssima, rs). Eu era muito sozinha (sempre a amiga de reserva), me achava horrorosa, mal saía de casa. Quem me dera tivesse erotismo e rituais macabros, rs, só tô tendo isso agora depois de adulta kkk. O texto me lembrou muito da música Teen Idle, da Marina, que tbm captura essas tensões.
Caramba!!