Meu Padim Pade Ciço
Me clareie a inspiração
Pra falar de uma mulé
Arretada feito o cão.
(Adriana Negreiros, 2018)
Uma mulher infeliz no casamento que busca refúgio na casa dos pais — essa não é uma história muito diferente de tantas outras que já se conhece. Essa também foi a experiência de Maria Bonita, antes de romper com as amarras sociais e entrar para a história e o imaginário popular do Brasil.
Em um casamento arranjado pelo pai, Maria de Déa — como era conhecida — estava casada desde os 15 anos com um primo mulherengo. Não conseguia se adaptar àquela vida solitária e resignada. A intensa vida extraconjugal do marido a levava, frequentemente, a buscar consolo na casa da família.
Enquanto isso, Lampião e seu grupo também viviam em fuga — não de um casamento infeliz, mas dos volantes (tropas de policiais e civis encarregadas de caçar cangaceiros pelo Nordeste). A recompensa pela captura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, era alta e os volantes usavam de brutal violência para conseguir qualquer informação do paradeiro dos cangaceiros.
Durante uma passagem do grupo de Lampião por sua cidade, não demorou para o encontro entre Maria de Déa e Virgulino acontecer. A figura controversa de Lampião atraía tanto admiradores quanto detratores. Chamado de justiceiro da caatinga por uns e de bandido por outros, o que não se podia negar era a sua coragem e valentia —características admiradas especialmente em 1928, no sertão nordestino.
E entre os admiradores, estava sua futura companheira.
Transgressora por natureza, em uma época em que mulheres eram confinadas ao espaço doméstico e ao silêncio, Maria de Déa decidiu abandonar o marido — quando o divórcio sequer era permitido — e reescrever seu destino entre um amor árido, condenado à tragédia, e a rebeldia.
Até então, não existiam mulheres no cangaço. Maria decidiu, por vontade própria, acompanhar Lampião e se tornou a primeira mulher a entrar no grupo. Estava disposta a viver esse amor com todas as dores e delícias que ele oferecia — mesmo que isso significasse viver como nômade, em acampamentos no meio da caatinga, sujeita à escassez e à constante perseguição policial.
Mas não há espaço para romantizações nessa história. O cangaço era regido por leis extremamente violentas e cruéis. Era um ambiente onde muitas mulheres eram tratadas como propriedade. Diferente de Maria Bonita, muitas eram raptadas ainda na infância, estupradas e forçadas a acompanhar seus violadores. Havia punições severas para desobediência, adultério ou qualquer comportamento fora dos padrões. Até mesmo rir alto era considerado vulgar.
Maria Bonita se destacava por sua personalidade forte, vaidade e múltiplas habilidades: montava a cavalo, atirava, costurava, cuidava dos feridos. Era uma das poucas pessoas alfabetizadas do grupo de cangaceiros, o que lhe permitia contribuir com as estratégias, acompanhar os jornais e antecipar os passos dos volantes e as ações do governo.
Com o ofício de costureira mesmo antes de entrar no cangaço, Maria Bonita e outras talentosas cangaceiras customizavam suas roupas com bordados, rendas e objetos pessoais. Isso influenciou o estilo visual do grupo, que já era conhecido pelos chapéus de couro adornados e vestimentas icônicas. A estética do cangaço virou uma espécie de “marca registrada”, com influência até hoje na moda brasileira.
E foi essa autenticidade que inspirou a estilista Zuzu Angel a criar uma coleção que viria a ser conhecida como Maria Bonita, exibida em Nova Iorque em 1970 na Bergdorf Goodman. Zuzu foi pioneira na valorização da identidade brasileira na moda, a coleção inspirada no cangaço resgatava os elementos visuais e simbólicos — como o couro, os recortes geométricos, os bordados manuais e os adornos metálicos —, Zuzu reinterpretou o visual de Lampião e Maria Bonita em criações sofisticadas e também denunciava o autoritarismo e violência da ditadura militar.
Em 1932, Maria deu à luz a Expedita Ferreira Nunes, sua primeira e única filha com Lampião. A partir da gravidez, começou a desejar abandonar a vida no cangaço, motivada pelo desejo de criar a filha. Ela sabia que, quando as cangaceiras davam à luz — e os bebês sobreviviam aos partos sem assistência — as crianças eram entregues às famílias de coiteiros (apoiadores do cangaço).
Hoje, Expedita está viva e tem 92 anos.
Os anos que seguiram não permitiram que Maria concretizasse o desejo de cuidar da filha. Getúlio Vargas, então presidente, intensificou a repressão ao cangaço, investindo pesadamente em sua erradicação, disponibilizando recursos e força militar. O grupo passou a ser considerado uma ameaça à ordem e, segundo o governo, uma ameaça comunista.
Em 28 de julho de 1938, Maria Bonita, Lampião e mais nove cangaceiros foram mortos a tiros e decapitados na Grota do Angico, em Sergipe, por tropas comandadas por João Bezerra da Silva. O episódio ficou conhecido como o “Massacre de Angico”.
Maria Bonita faleceu aos 28 anos.
Não satisfeitos da barbárie, as cabeças foram exibidas como forma de propaganda do governo Vargas em cortejos macabros por diversos municípios até ficarem em estado de decomposição.
Lampião, Maria Bonita e o cangaço desde então inspiram o cinema, moda, música, literatura e as artes plásticas. São figuras emblemáticas de um movimento de resistência social marcado por contradições e violência. O mito do cangaço ainda ecoa nas paisagens áridas do sertão e na memória de gerações.
Recentemente, entrou no catálogo da Disney+ a série Maria e o Cangaço, inspirada no livro de Adriana Negreiros, Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço (2018), que também tive o prazer de ler. Na obra, Adriana resgata trajetórias femininas apagadas ao longo da história e revela a importância de uma perspectiva feminista para resgatar a existência e a memória de tantas mulheres esquecidas.
Confesso que comecei a assistir à série com o pé atrás. A escolha de parte do elenco não nordestino me causou receio — temia algo caricato e de mau gosto. Mas, para minha surpresa, gostei das atuações, dos sotaques, das cenas belíssimas do sertão, da produção cuidadosa e, claro, da entrega de Ísis Valverde, que me pareceu à altura da figura que Maria Bonita representa.
Maria de Déa, ou Maria do Capitão, só passou a ser chamada de Maria Bonita após sua morte. Ela não imaginava que, mais de um século depois de seu nascimento, sua memória estaria ainda tão viva. Para além da polarização entre heroína ou vilã, Maria Bonita foi uma mulher rebelde, transgressora e, acima de tudo, humana — portanto, imperfeita.
Revisitar sua figura lendária é compreender que, apesar das décadas que nos separam, sua história ainda ressoa e inspira coragem. Em uma sociedade que ainda se luta contra o machismo estrutural, amarras sociais e o apagamento de vozes femininas, a figura de Maria Bonita ressurge como símbolo de resistência e liberdade.
Porque bonito mesmo — é ser livre.
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Tem uma série na Amazon, “cangaço novo”, que é muiiiitoooooo boa de verdade. Depois deem uma olhada. É sobre essa estrutura de cangaço existindo na atualidade, em uma cidadezinha. As atuações são impecáveis.
Amei ler esse texto ❤️
Existem muitas contradições sobre a verdadeira história do cangaço e seus financiadores. O interessante é perceber como a condição da mulher nordestina, em muitos interiores da nossa região, ainda continua como a de Maria de Déa. Digo porque lendo seu texto, percebo uma ideia de que a repressão social do cangaço e do machismo da época, mesmo que pareça algo tão absurdo ou violento apenas daquele tempo, ainda é regra para muitas de nós que vivem aqui. Maria Bonita era talentosíssima com os bordados e costuras e ganhava diversas jóias por isso, inclusive um dedal de ouro presenteado por Lampião. Adorei o texto. Um xero.