“se você acha cabelo tão excitante assim, talvez você devesse raspar o seu bigode! ”
Marjane Satrapi, mulheres, véu , aiatolás e o Ocidente.
A gente não gostava muito de usar o véu, principalmente porque não entendia o motivo.
Ao abrir o livro Persépolis, de Marjane Satrapi, é como entrar numa casa onde os objetos, as roupas, os medos e as lembranças carregam o peso da história. A obra começa com uma cena simples: uma menina de dez anos, na escola, usando o véu pela primeira vez após a Revolução Islâmica Iraniana de 1979. Marji e suas amigas não entendem por que, de repente, precisam cobrir o cabelo, por que os meninos foram separados das meninas, por que o Estado agora quer regular tudo que está a sua volta.
É aqui que Persépolis nos toma pela mão. Aquele véu que Marji passa a usar não representa um gesto de fé individual, mas sim a imposição do controle do Estado sobre o corpo das mulheres. O véu torna-se uma fronteira visível entre o que o regime aceita e o que condena.
“Será que meu véu está cobrindo bem o cabelo? O casaco está comprido o bastante? Eu rezava para passar despercebida.”
A autobiografia gráfica da autora e cineasta iraniana narra sua infância e adolescência, levando o nome da capital do antigo Império Persa antes de ser invadida por Alexandre, o Grande, em 334 a.C. A obra também é um resgate da memória de uma das maiores civilizações já existentes e o lamento do que ela poderia ter sido. Hoje de Persépolis só restam ruínas e fragmentos do passado.
A obra articula, com sensibilidade, o olhar curioso e inquieto de uma criança sobre a transição entre uma monarquia opressora e um Estado teocrático igualmente sufocante. Satrapi não poupa críticas ao regime dos aiatolás, com suas leis misóginas, sua repressão brutal à dissidência e seu uso da religião como instrumento de controle. Ao mesmo tempo, denuncia o olhar europeu e estadunidense sobre o Irã, sua perspectiva colonizadora, superficial e pautada por interesses geopolíticos próprios.
Essa crítica dupla é especialmente relevante ainda hoje.
O quadrinho, possui um desenho inconfundível em preto e branco com traços simples e expressivos, torna-se uma marca registrada de Marjane, potente justamente por sua sobriedade. Não há ornamentação. O contraste entre a rigidez do Estado e a resistência cotidiana da juventude é o que brilha.
Ao acompanhar a trajetória da jovem Marji — curiosa, rebelde, amante do punk rock e dos livros proibidos — o leitor é introduzido ao cotidiano de um país sob vigilância moral e censura política. As roupas que se pode usar, os livros que se pode ler, as palavras que se pode dizer e até o modo de andar nas ruas são vigiados pela polícia moral. Com isso, vieram as prisões, os enforcamentos de antigos camaradas de luta, a guerra Irã-Iraque que consumiu a esperança de uma geração inteira. Ao mesmo tempo, Satrapi revela as brechas nesse controle: os refúgios clandestinos da juventude, os sorrisos que sobrevivem à repressão, a ironia como ferramenta de subversão.
Ao falar de geopolítica no Oriente Médio, é preciso evitar simplificações. Uma breve recorte na linha do tempo ajuda a entender os agentes envolvidos nessa equação. Um exemplo é o golpe de 1953, articulado pelos EUA e pelo Reino Unido , que derrubou o premiê Mohammad Mossadegh após sua tentativa de nacionalizar o petróleo iraniano, que estava sob controle britânico.
O petróleo voltou às mãos das potências estrangeiras, enquanto o povo herdou a repressão da polícia secreta (SAVAK) - mantida com recursos estadunidense-, prisões políticas, embargos econômicos seletivos e uma desigualdade crescente.
Em Persépolis, Satrapi mostra como o Ocidente contribuiu historicamente para a instabilidade da região. Antes da revolução, o Irã era governado pelo xá Mohammad Reza Pahlavi. À primeira vista, parecia um país a caminho da modernidade: mulheres em Teerã estudavam em universidades, trabalhavam em escritórios, usavam roupas ocidentais se quisessem. A cidade era cheia de cinemas, cafés e livrarias. O xá investia em infraestrutura, indústria e tecnologia.
Mas essa modernização era uma fachada. Por trás dela, havia uma ditadura apoiada de perto pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido.
Assim, quando o povo foi às ruas em 1979, não protestava apenas contra a monarquia: protestava contra a corrupção, a pobreza e a humilhação nacional diante do Ocidente. No entanto, a revolução, que deveria ser popular, foi rapidamente capturada pela ala mais radical do clero, liderada pelo aiatolá Khomeini. A promessa de liberdade deu lugar ao domínio da teocracia e hostilidade ao Ocidente.
Quarenta anos depois, em 2022, o véu voltou ao centro da luta. Mahsa Amini, uma jovem curda de 22 anos, foi presa em Teerã porque, segundo a polícia da moralidade, não usava o véu corretamente. Horas depois, estava morta, sua morte nunca foi devidamente explicada. O que se seguiu foi uma das maiores ondas de protesto da história recente do Irã. Mulheres queimaram seus véus nas ruas, cortaram o cabelo diante das câmeras e desafiaram o regime com um grito:
“Mulher, Vida, Liberdade.”
É curioso e doloroso perceber como o discurso dos direitos humanos, presente nas lutas das mulheres iranianas e de civis que lutam contra a opressão do regimes dos aiatolás pode ser instrumentalizado como peça de um xadrez geopolítico. O mesmo grito que surgiu dos protestos pela morte de Mahsa Amini, foi usurpado por Israel em fóruns internacionais enquanto bombardeava Gaza e negava direitos às mulheres e crianças palestinas e bombardeava o Irã matando milhares de civis.
Em nome da defesa dos direitos humanos no Irã, justificam-se bombardeios, ataques a hospitais, escolas e áreas residenciais e o aprofundamento da violência regional. As mulheres iranianas , aquelas que saem às ruas arriscando a própria vida, veem suas vozes sequestradas para legitimar novos massacres. Sua luta, que é contra o autoritarismo e por dignidade, vira discurso vazio na boca de quem responde com mísseis e mais destruição.
Satrapi, vivendo em exílio na França desde 1994, convive com o incômodo de ser usada como “voz do Oriente” por um Ocidente que pouco se importa com os corpos que diz defender. Ela afirma em entrevista que um dos motivos de criar o livro era a falta de informação por parte do Ocidente em relação ao seu país natal.
“Para mim, houve tantos mal-entendidos e tantos erros em relação ao meu país que eu queria contar a história de uma forma que as pessoas a entendessem melhor. Então, tive que considerar isso também como um dos parâmetros enquanto escrevia, porque não queria escrever um livro que só eu, eu mesmo, pudesse entender. Este livro foi realmente um grito, tipo: "Por favor, venha, eu vou te contar como foi!"
Seu mais recente trabalho é o livro colaborativo “Mulher, vida e liberdade” (2024), que reúne especialistas e artistas, cientistas políticos, jornalistas e historiadores, além de 17 quadrinistas de diversas partes do mundo, o livro traz à tona uma história crucial para a compreensão da atual revolução social no Irã, abordando questões sobre opressão, resistência e a busca por igualdade. A obra não só presta homenagem a Mahsa Amini, mas também a todas as mulheres que, corajosamente, enfrentam os desafios impostos pelo regime iraniano.
É difícil imaginar um desfecho realmente positivo, no caso do Irã, qualquer que seja o resultado, o cenário é sombrio. Se perder a guerra, o país pode mergulhar em uma espiral de ditadura, guerra civil, miséria e fortalecimento de grupos ainda mais radicais , como vimos no Iraque e no Afeganistão. Se vencer, o regime dos aiatolás tende a endurecer ainda mais o controle sobre a população. No fim, os que pagam o preço são, como sempre, os civis iranianos sufocados entre a repressão interna e os embargos externos.
Hoje, diante de um Oriente Médio em chamas, talvez o maior gesto de respeito que possamos oferecer às mulheres e homens que resistem a opressão, seja escutar. Dar a devida voz e ecoar o grito de quem merece ser ouvido e não se distrair com discursos imperialistas e de superioridade moral.
Persépolis foi escrito entre 2000 e 2003 em volumes e foi adaptado para o cinema em 2007. O cinema iraniano é extremamente vibrante e de alta qualidade, o país possui diversos prêmios ao redor no mundo incluindo dois Oscars, que inclusive concorreu com “Ainda estou aqui” para melhor filme estrangeiro em 2025. A comunidade do cinema e arte sofre muita perseguição realiza muitos desses projetos escondido ou a distância, por estarem exilados em outros países.
Segue lista de indicações:
A separação (2012) Asghar Farhadi
Holy Spider (2022) Ali Abassi
Táxi Teerã (2015) Jafar Panahi
Filhos do Céu (1997) – Direção de Majid Majidi
Gosto de Cereja (1997) – Direção de Abbas Kiarostami
A semente do Fruto Sagrado (2024) Mohammad Rasoulof
Já escrevi também sobre um filme de horror iraniano , que vou deixar abaixo com o link.
Garota Sombria Caminha Pela Noite
Uma garota solitária sai durante a noite para fazer justiça. Seus alvos? Os mais degradantes possíveis.
Sensacional, minha nossa! Quero ler as indicações e assistir aos filmes o mais rápido possível! Que post poderoso e necessário Nat, fiquei realmente impactada. Muito obrigada por compartilhar 💜
muito bem construído, Nat! sem vacilação na corda bamba desse assunto delicado, ainda trouxe ótimas referências. "A separação" é um dos meus filmes favoritos da vida <3 sempre que posso, indico. fiquei feliz de vê-lo na lista.