Uma garota solitária sai durante a noite para fazer justiça. Seus alvos? Os mais degradantes possíveis.
Bad City é uma cidade iraniana decadente, lar de degenerados, cafetões e assassinos — e também de A garota (Sheila Vand). A solitária vampira, perambula pela noite à caça apenas de homens que cometem algum tipo de violência contra mulheres.
As caçadas noturnas ocorrem sem pressa e são para além de saciar a sede por sangue humano. As vítimas são escolhidas a dedo: de assediadores a assassinos, nenhum homem que cometa algum mal contra uma mulher será poupado. Ela é uma anti-heroína — uma vampira movida por justiça, que gosta de gatos e de Lionel Richie.
As noites de perseguição da garota vampira já não parecem mais as mesmas. Sua existência solitária é abalada ao conhecer Atti (Mozhan Marnò), uma prostituta sábia e magnética, que ela defende de um degenerado, e Arash (Arash Marandi), um jardineiro enfrentando problemas familiares e financeiros — de potencial vítima para alguém que ela inicia uma relação amorosa incomum e eletrizante . A predadora implacável, por um lapso de vulnerabilidade e humanidade, encontra o amor e a amizade enquanto flutua em seu skate pelas ruas escuras de Bad City.
Garota Sombria Caminha Pela Noite (2014) é dirigido por Ana Lily Amirpour. O longa é fruto de um curta de mesmo nome, lançado em 2011. A diretora gostou tanto da personagem que sentiu que precisava expandir sua história em um longa-metragem.
Ana Lily é uma cineasta inglesa, de origem iraniana, que cresceu nos Estados Unidos. Ela faz questão de trazer influências multiculturais para seus trabalhos. Apesar de filmado na Califórnia, o longa é ambientado em uma cidade fictícia no Irã, é falado totalmente em farsi e conta com um elenco de atores e atrizes iranianos. O filme também funciona como uma crítica à sociedade iraniana e à misoginia vivida pelas mulheres.
Outro elemento cultural importante que ela trouxe ao filme é o xador (ou chador), uma veste muçulmana muito usada no Irã. Trata-se de um tecido longo que é colocado sobre a cabeça, cobrindo todo o corpo e deixando apenas o rosto à mostra — uma vestimenta que pode ser interpretada tanto como símbolo de opressão religiosa quanto como emblema de resistência diante da intolerância enfrentada por pessoas muçulmanas ao redor do mundo. Essa última perspectiva pode ser reforçada pelo fato de que A Garota, sendo a única mulher que usa a vestimenta no filme, parece fazê-lo por escolha própria.
Categorizado pela própria Ana Lily como um “faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros”, o filme faz referência ao subgênero dos faroestes de baixo orçamento filmados por diretores italianos, geralmente nos Estados Unidos, marcados por anti-heróis moralmente ambíguos e sem nome.
Garota Sombria Caminha Pela Noite desafia nossos sentidos estéticos e conhecimentos prévios sobre vampiros — especialmente sobre o vampirismo feminino. Ressignifica elementos visuais clássicos: a tradicional capa é substituída por um xador; o voo dá lugar ao skate; as roupas estilo família Volturi da saga Crepúsculo abrem espaço para uma blusa listrada, calça e tênis. Os cenários não são castelos medievais europeus, mas uma cidade iraniana fictícia e decadente. Esses são alguns dos elementos que criam uma narrativa inovadora, que traz um ar fresco ao cenário do horror contemporâneo.
Ana Lily traz muito de si à obra. Suas escolhas criativas misturam referências orientais e ocidentais, sua paixão por música pop dos anos 80 (visível na trilha sonora), e seu amor por skate. Inclusive, é ela mesma quem aparece nas cenas à distância da vampira andando de skate.
Em entrevista para VICE a diretora e roterista é questionada da razão de criar uma personagem tão solitária, um aspecto com o qual ela afirma se identificar profundamente.
“A solidão me conforta, é algo muito palpável, é onde eu tiro maior parte da minha força. Eu acho que na solidão é onde você entra em contato com você mesmo de muitas formas, porque ser humano é uma experiência muito singular, particular e interna.”
A atmosfera cinematográfica é hipnotizante : filmado em preto e branco, com poucos diálogos e uma estética muitas vezes contemplativa, o longa convida o espectador a se deleitar na fotografia e nos detalhes do não dito.
O filme chegou ao Brasil em 2015, em um circuito pequeno. Lembro de sair da sala do cinema encantada. A verdade é que eu amo assistir personagens femininas que flutuam entre o bem e o mal, que desafiam o papel de vítimas indefesas e existem para além de qualquer personagem masculino. Sempre vou querer assistir a vampiras assassinas que manipulam suas vítimas, que se maquiam sem olhar no espelho —até porque não têm reflexo—, que gostam de gatos e defendem prostitutas.
A trilha sonora para quem interessar :
entrevista para a VICE com legenda em português veja aqui
Trailer legendado:
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Uma mulher moderna incomoda muita gente. Ao Monteiro Lobato ela incomoda muito mais.
“E eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura.”
Amei a indicação!! Vou estar assistindo urgentemente
caramba, nunca tinha ouvido falar desse filme, vou adicionar na minha lista… texto muito bem escrito, parabéns!!